Violência doméstica, uma herança patriarcal

Por Eni Amorim

Vamos chamá-la de Valentina, ela era uma menina, sonhadora, alegre, cheia de vida, gostava de sorrir, cantar dançar, de ser feliz.

Nasceu em uma comunidade do interior a onde a vida era bastante difícil devido a pobreza extrema naquele dado momento histórico.

Valentina era semiletrada, só aprendeu a escrever o nome estudando na casa do professor como era costume da época.

Começou a trabalhar muito cedo, desde criança na agricultura (trabalhos na roça), tecia redes de fio têxtil e fazia serviços domésticos em casa de famílias.

Ainda adolescente, no auge dos seus doze anos fugiu de casa com um rapaz de nome Bernardo, dez anos mais velho que a iludiu com falsas promessas de uma vida melhor.

Perdeu sua virgindade em um processo muito violento e doloroso, na verdade um verdadeiro estupro que a deixou cheia de culpas. Logo em seguida, foi abandonada pelo rapaz.

Ela se sentiu totalmente violentada e naquela época uma jovem perder a virgindade era inaceitável pela família e pela sociedade e ela teve que sobreviver com esse estigma na alma.

Sua mãe ainda tentou dar queixa do dito cujo que a violentou, mas a justiça o protegeu como sempre fez com o “macho” nessa herança patriarcal de dominação de poder.

Diante da nova realidade e da dureza da vida teve que se prostituir para ajudar a família. Ganhava mimos, joias e falsas promessas dos seus amantes que na maioria eram homens casados.

Manteve um relacionamento com Carlos Garcia com o qual teve dois filhos.

Bem mais tarde quis o destino que ela se reencontrasse com o seu violador, Bernardo com o qual teve um relacionamento estável que durou quarenta e cinco anos, com o qual teve onze filhos.

Valentina teve que trabalhar muito para criar seus treze filhos naquele período de muitas dificuldades, fez muitos serões noite à dentro trabalhando em casa de famílias. A pobreza era tanta, teve que desmanchar suas roupas para fazer roupas para os filhos. Contou que , chegaram a passar fome várias vezes e que trabalhava em troca de comida para os filhos.

Muitas vezes quando não tinham comida, pegavam banana quase madura, cortavam em tirinhas, mergulhavam em água de sal, colocavam em espetos, assavam e comiam. Muitas vezes comiam peixe seco com angu de farinha, chibé ou dividiam um ovo para dois filhos, outras vezes iam dormir a barriga roncando de fome e o desejo de no outro dia ser diferente.

O Bernardo por sua vez gastava o pouco que tinha com prostitutas e com bebida, gostava de se sentir boêmio. Bernardo era extremamente ignorante, ela sofria todos os tipos de violência doméstica de seu companheiro, violência psicológica, moral, lhe dava amantes e chegou a lhe bater varias vezes de relho, de pau, de corda. Até tentou lhe matar por algumas vezes, em uma dessas vezes um de seus filhos a salvou e foi então que resolveu separar-se do seu companheiro antes que o pior acontecesse.

Valentina sofria sua dor pensando no futuro dos seus filhos que segundo ela são o seu maior tesouro e o seu amparo agora que a velhice chegara trazendo suas limitações.

Nesse cenário nada fictício, podemos dizer que Valentina, além de vítima é também sobrevivente pois é alguém que conseguiu romper o ciclo da violência, alguém que saiu ou sobreviveu, que superou de alguma forma a brutalidade da violência doméstica em todas as suas formas. “Afinal, não tem como ignorar que o Brasil é o quinto país em número de feminicídios no mundo.”

N.A. Conto baseado em fatos reais. O nome dos atores são fictícios para preservar a identidade das pessoas.

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