Crônica de Francisco Viegas, publicada no livro Ecos da Baixada.
Quando os raios de sol descortinam no horizonte e começam a bronzear as nuvens que se movimentam como fumaça levadas pelo vento é a anunciação de que o dia está chegando para cumprir o que de mais belo ocorre na rotina da natureza.
Os pássaros em revoadas brincam sem parar num vaivém de intensa alegria e cantam o prelúdio da vida em sintonia com o amanhecer.
A rotina que se desenha em cada alvorecer parece transbordar as medidas do possível que, em outros momentos, vão tomando forma e proclamam o que sempre acontece de um jeito ou de outro. Nada fica para trás sem que se cumpra o que tem de ser cumprido nos primeiros momentos da aurora. A natureza providencia tudo segundo a rotina da vida no espaço e no tempo. E a terra se entrega em produção e colore sua existência do que há de mais belo aos olhos das criaturas.
O fascinante impressionismo remete a todos a feitura do Grande Arquiteto do Universo, que não poupou esforços em criar o que de mais encantador existe debaixo do céu. Um pedacinho desse universo se chama de Baixada Maranhense. Nela foram colocadas, de formas ornamentais, ilhas, morros, rios, lagos, lagoas e uma infinidade de campos inundáveis a perder de vista.
Como é lindo olhar as graúnas e outros pássaros em voos miúdos e as japeçocas (japiaçocas) pousadas nas vitórias-régias, que dão um tom ornamental de uma beleza ímpar aos campos com centenas de outras flores. Na Amazônia as vitórias-régias chegam a medir um metro de diâmetro, com o aspecto de grandes sombreiros mexicanos, onde os peixes se abrigam da luz solar.
Peixes de pequenos portes praticam suas peripécias em saltos para abocanharem os insetos de seus interesses que estão descansando nos caules das plantas. E quando o pescador observa esse fato faz seu pesqueiro ali próximo para disputar, também, a sua sobrevivência com alguns pescados.
Os campos da Baixada Maranhense formam uma grande manjedoura que cria e acalanta a vida aquática a se repetir todos os anos enquanto a água perdura. Sem água, quebra-se a cadeia produtiva e o encanto da vida. E, se falta água, sobra sofrimento e desespero, que deixa a esperança do baixadeiro árida e prolongada até o próximo inverno.
O poeta José Chagas no Soneto 3 do seu livro Colégio do Vento, com sua criatividade, dá uma dimensão do que tudo isso representa em beleza e preocupação para os baixadeiros, mesmo ele sendo sertanejo:
“O campo era um continuar de vida
a se estender pelo horizonte a fora,
e a paisagem se dava repetida,
tanto em seu pôr do sol, como na aurora,
com a luz sendo uma cálida bebida
a embriagar a vastidão sonora,
onde as aves em voo na paz erguida
cobriam de asas o seu ir embora,
e o azul era uma longa despedida
do tempo a consumir-se todo em hora,
para, fugindo assim, dar a medida
de tudo o que era pressa na demora,
e o quanto fosse solidão já ida
não mais voltasse como volta agora”.
Os prometidos Diques da Baixada pelas autoridades governamentais parecem obra de ficção. Passada a filmagem nada se concretizou a não ser a promessa. E, novamente, no próximo pleito eleitoral renova-se tudo mais uma vez, e até colocam máquinas para garantir, como quem garantia antigamente com um fio do bigode, o trato acordado.
A Barragem dos Defuntos localizada ao sudeste de Peri-Mirim, construída com o objetivo de manter a água doce nos campos e evitar a contaminação pela água salgada, que vem do mar, por diversas vezes, durante a estação invernosa sofria a ação das intempéries do tempo e tinha que ser socorrida com o fim de evitar a evasão fulminante da água, que descia ao mar formando caudalosos rios.
Para solucionar o desperdício e o rompimento progressivo daquele anteparo, o prefeito de Peri-Mirim contratava um homem experiente que soubesse liderar uma boa equipe de trabalhadores com o objetivo de sanar as avarias causadas pelas fortes chuvas. Essa labuta exigia dos trabalhadores um condicionamento físico de boa qualidade e muita dedicação no enfrentamento da tarefa, inclusive em condições inesperadas, com animais peçonhentos de todas as espécies e tamanhos, muriçocas e maruins a perturbarem o desenvolvimento do serviço.
Por volta do ano de 1956, meu pai era o líder de uma equipe que recuperava a barragem em ocasiões de acentuado inverno, quando um dos seus comandados foi mordido por uma cascavel pequena, que os companheiros mataram. Levaram o acidentado juntamente com o réptil para o líder avaliar o que fazer, haja vista que não havia soro antiofídico no local. A solução encontrada pelo líder no momento foi dar um brado no trabalhador, argumentando que uma cobrinha daquele tamanho não teria como molestar um homem novo e forte do tipo do acidentado. E não é que deu certo! – Além disso, foi espremido o local ferido para expulsar o veneno inoculado no sangue e lavado com uma pinga, superficialmente.
Naquela época os habitantes do município, principalmente os criadores de gado, cobravam do prefeito da cidade que cuidasse de manter a barragem íntegra para o bem dos seus rebanhos e o povo, por sua vez, também fazia coro nesse sentido com o intuito de garantir o sustento de suas famílias com o pescado.
Havia, portanto, um entendimento saudável entre a população e o Poder Executivo. A cada inverno os canoeiros e pescadores se juntavam para limpar os igarapés com o incentivo do prefeito que, mesmo sem gastar dinheiro para isso, parecia ter em mente a satisfação de lidar com o problema mostrando a eficácia desse trabalho.
Com os igarapés limpos os canoeiros praticavam menos esforços na movimentação de suas embarcações e as piabas usavam o caminho limpo e com água corrente vinda do rio Aurá, para tentarem subir em piracema. Mas ao chegarem numa pequena barragem que une a sede do município ao bairro Portinho eram alcançadas pelas tarrafas dos pescadores que as esperavam com o fim de capturá-las. E assim a vida na Baixada vai seguindo seu curso na beleza enquanto tem água, enquanto tem alimento, e no sacrifício de décadas de espera por uma tomada de decisão que prolongue o tempo de cheias em nossa região.